sábado, 19 de junho de 2010

O que é santidade? V

Entre outras coisas, vimos no texto passado que, Evangelho não é mudança de vida; mudança de vida é apenas o resultado inevitável na vida de quem recebe o Evangelho. 

Pois bem, muitos já estão cansados de saber que precisam mudar. Então, onde está a boa-nova em dizer o que tantos já sabem? Isso mais facilmente traz desespero ao invés de esperança. 

Não que seja desnecessário falar sobre mudança de vida. A Bíblia fala sobre mudança de vida. Só não somos biblicamente autorizados a aderir a esse reducionismo mundano de transformar nisso a vida cristã.

Mais do que natural que o cristão queira uma vida santa, pois, com Deus  no coração, não dá outra, ele vai querer fazer a vontade do Pai; e o Pai quer o melhor para nós. Mas, além da ênfase equivocada em cima dessa mudança, geralmente as pessoas se perdem também no “como”.

- Sei que preciso mudar, mas como faço isso?
- Abandone seus pecados!
- E como abandono meus pecados?
- Santificando-se a cada dia.
- E como eu faço para me santificar?
- Deixando de ver, ouvir, comer e vestir tudo o que não agrada a Deus.
- Mas como eu consigo deixar essas coisas?
- Estando cada dia mais perto de Deus.
- E como exatamente eu faço para estar cada dia mais perto de Deus?
- Nossos pecados fazem separação entre nós e Deus, então, você deve abandonar seus pecados!

Obviamente, você percebeu que o diálogo acima é uma conversa tautológica, que não chegará a lugar algum. E é justamente esse tipo de cristianismo, que não chega a lugar algum, o único ao qual muitos têm acesso.

Nesse ponto, facilmente, alguém poderá citar um verso muito conhecido, sobretudo pelos adventistas do 7º dia: “O que desvia os ouvidos de ouvir a lei, até a sua oração será abominável” (Pv28:9). “Está vendo?”, dirão alguns, “Primeiro precisamos guardar a lei, abandonar nossos pecados, santificar-nos, se quisermos chegar-nos a Deus”. Ignoram que o texto fala dos que, deliberadamente, fazem ouvidos moucos aos ditames divinos (v. 14) e com isso já demonstram não permanecer nEle, pois, “todo aquele que permanece nele não vive pecando; todo aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu” (1 Jo3:6). Cristo atende a toda oração de quem permanece nEle: Se permanecerdes em Mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será concedido (Jo15:7).

O texto de Provérbios é destinado àqueles que desviam seus ouvidos, viram as costas, recusam-se resolutamente a ouvir e não estão nem aí para atender a vontade de Deus. Se não querem ouvir a Deus, graças a Deus que Ele também não os ouve. Pois um coração longe de Deus é perito em pedir coisas para sua própria ruína (Je.17:9; Jo15:7; Tg4:3).

Sendo assim, é biblicamente inaceitável usar uma passagem como essa para fundamentar a ideia de que devemos nos santificar a fim de sermos aceitos por Deus. Não é disso que a passagem trata. Primeiro Deus nos aceita, e então, inevitavelmente, nos santifica.

Expliquemos melhor essa questão, até mesmo para depois não dizerem que estou ensinando que podemos viver em pecado e ao mesmo tempo estarmos salvos. Jamais poderia dizer tal coisa sem incorrer em rebaixamento do sacrifício de Cristo, que veio nos salvar do pecado (Mt1:21), e não no pecado. A questão é que em todas as ocasiões em que a Bíblia apresenta Deus se negando a aceitar oração, sacrifício ou oferta de alguém é porque esse alguém não o fez com verdadeira contrição. Se há deliberada falta de santificação, esse é o simples indicativo de que a pessoa não está em espírito contrito. Sendo assim, porque enfatizar tanto a santificação, se ela é apenas a ponta do iceberg?

Veja um exemplo da biblicidade desse conceito: “Pelo que, quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, por que as vossas mãos estão cheias de sangue (Is1:15). O capítulo fala muito em purificação, etc. Porém, é nítido nesse verso, bem como em todo capítulo 1 de Isaías, que o que Deus condena é a hipocrisia (vimos em "O que é santidade? III" um pouco da origem dessa hipocrisia). O que Deus condena é o viver em pecado e ainda assim viver seu “cristianismo” como se nada estivesse acontecendo.

É fato que Deus pede que nos purifiquemos, mas o método de Deus parece bem diferente daquele que tantos têm usado e ensinado. Veja o que Ele diz mais adiante em Isaías 1: [1.º]Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor; [2.º]ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã” (Is1:18). Percebe? A maneira divina de ser puro e livrar-se do pecado é: “Vinde, e assim podereis ser santificados”. A maneira humana é: “Santificai-vos, e assim podereis vir”. Ah, meu amigo, tem tanta gente pregando isso de forma velada por aí! Preste mais atenção nos sermões, palestras e conversas dos cristãos em geral, nas suas próprias, para ver o quanto desse conceito está entranhado em toda parte.

Uma passagem usada pelos adeptos dessa que podemos denominar de santificação paranóica é: “Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros. Purificai as mãos, pecadores; e vós que sois de ânimo dobre, limpai o coração. Afligi-vos, lamentai e chorai. Converta-se o vosso riso em pranto, e a vossa alegria, em tristeza” (Tg4:7-9). Hum! E agora? O texto parece claro ao dizer que primeiro devemos santificar-nos para que Deus nos aceite, não é?

Analisemos mais de perto. O verso 9 conclama a lamentar, chorar e se entristecer. Parece claro quanto a isso também, não é? Contudo, se assim for, há aqui uma contradição com outros textos das Escrituras, como: “Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos”, “aprendi a viver contente em toda e qualquer situação” (Fp4:4 e 11). Nunca vi ninguém que usa essa passagem de Tiago para falar de santificação como alvo da vida cristã, pregar com base nela que a vida cristã deve ser aflita, lamentosa e triste. Aí, nessa parte, num instante sabem fazer exegese e contextualização.

Então, vamos lá? Vamos fazer uma exegese simples, porém, séria do texto de Tiago para não termos problemas? Primeiramente, examinemos o contexto do que ele estava falando. O assunto era: “soberbos” (v. 6). Lembra-se que falamos um pouco sobre dependência de Deus e rendição a Ele, no texto passado? Pronto. Olha aí esse conceito de novo! O autor está falando contra os soberbos, aqueles que não querem render-se, sujeitar-se a Deus. Veja que o texto exorta: “Sujeitai-vos, portanto, a Deus” (v. 7).

O texto nos ensina como é que se resiste ao diabo (v.7), como é que se purifica: sujeitando-se a Deus. Somente pela graça de Cristo. Note que antes de Tiago falar em purificação ele fala em sujeição e também na graça divina concedida ao pecador para resistir (v. 6). Nada de purificação por meio do abandonar tal estilo musical ou tal peça de roupa. Não estou dizendo que devemos escutar ou vestir qualquer coisa; estou dizendo simplesmente que o texto não fala sobre isso. Ao contrário, ele aborda o assunto bem da maneira que estamos expondo aqui desde o primeiro post desta minissérie: dependência e sujeição.

Então, se o texto não fala sobre determinado assunto, não devemos inventar. Alguns chamam isso de homilética e acham que está tudo certo. Deve ser homilética mesmo: interpretação com base nas filosofias dos “homi”, em filosofias que são nada mais que moralismo gospel, não conceitos bíblicos. Falam que devemos seguir a Bíblia, mas na hora de especificar o que é santificação e como atingi-la, apelam para toda sorte de convenção social moralista, menos para a Bíblia.

Note também que o texto fala sobre limpar o coração (v. 8). Mais uma vez, vemos que a Palavra de Deus soa diferente dessa ênfase exagerada que vemos por aí acerca de limpar-nos de coisas exteriores.

O termo “pecadores” (v. 8), no original, refere-se a uma classe específica de pecadores. A palavra no grego é hamartolos, que significa pecador contumaz, homem mau, indivíduo cujo pecado é aberto, evidente, notório” (veja, aquele mesmo pecador deliberado que vimos em Provérbios 28:9 e Isaías 1). Então, o recado é para os soberbos e impenitentes, não para aqueles que assistem a jogos de futebol ou usam maquiagem ao mesmo tempo que pretendem manter uma vida de comunhão com Cristo.

Apelam tanto à paranóia de santificação e abandono de pecado dizendo que é o pecado que faz separação entre Deus e nós. E isso é verdade (Is59:2). Acontece que, para cometermos qualquer pecado, é preciso primeiramente separar-nos de Deus, romper nosso relacionamento com Ele. É impossível um ramo que está ligado à Videira Verdadeira – o que significa que está sendo nutrido por ela – dar frutos ruins ou não dar frutos (Mt7:18; Jo15:5). Como alguém pode dar maus frutos sendo nutrido pelo próprio Deus? Logo, para pecar, temos de nos desligar da Videira, nem que seja por um instante.

É impossível pecar junto de Deus. Veja que os discípulos precisaram andar afastados de Jesus por alguns instantes para, só então, ter aquele vergonhoso debate sobre quem seria o maior no reino (Mc9:33-34). Pedro teve que deixar de olhar para Jesus por alguns segundos e começar a focar sua atenção em outras coisas para começar a afundar, naquela madrugada no lago (Mt14:34).

Uma vez separados de Deus, pecamos. Ao pecarmos, separamo-nos um pouquinho mais. Por nos separarmos mais, pecamos ainda mais. Pecando ainda mais, separamo-nos mais ainda; o que, por sua vez, faz com que avancemos mais ainda no pecado... É uma bola de neve, um círculo vicioso, representado no esquema abaixo.
O que fazemos, então, para quebrar o ciclo? Paramos de pecar? Parece lógico, não? Pois, se pararmos de pecar, paramos de nos afastar. Mas não é assim que funciona. Não conseguimos parar de pecar (Rm3:10-18). Está em nossa natureza humana. Em nosso DNA. É o que adoramos fazer (Rm7:19). É só o que sabemos fazemos, por mais que isso nos machuque. Só estando junto a Cristo para que Ele nos conceda uma nova natureza, por meio de um novo nascimento diário.

Não estou dizendo que um mau comportamento não influencie na comunhão com Deus. Como vimos no esquema, é um ciclo, então uma coisa certamente influencia a outra; mas é um ciclo que se origina no afastamento de Deus. É nesse ponto, então, que o ciclo deve ser quebrado. Só apresentamos mau comportamento quando apresentamos mau relacionamento com Deus, nem que seja por alguns instantes.

Assim, se você está se concentrando em parar de pecar, está principiando no lugar errado, e isso fatalmente lhe levará a um daqueles dois caminhos que vimos no início de O que é santidade? III. Se você quer mesmo parar de pecar, pare de tentar, renda-se e deixe Cristo lutar por você. 

A santificação principia no relacionamento com Deus e serve para fazer com que nos relacionemos melhor com Ele. Qualquer ênfase em santificação em si mesma é antibíblica. Qualquer ênfase em santificação por meio de coisas exteriores é antibíblica. Ninguém peca porque parou de se santificar, mas pára de se santificar porque pecou em parar de se relacionar com Deus. Sendo assim, por que não principiarmos pelo lugar certo? Por que não paramos de enganar os outros e a nós mesmos como se nossos paliativos fuleiros de “vista isso”, “coma aquilo”, “pare de ouvir aquilo outro” nos levassem para mais perto de Deus?

Meu amigo, nossos pecados fazem separação entre nós e Deus. Sabe o que isso significa? Sabe realmente?? Há um escabroso e gigantesco abismo a separar o pecador de Deus. Cristo é nosso único mediador (2Tm2:5), nossa única ponte para chegarmos ao Pai. CRISTO é a ponte! Tem noção do que isso significa? Tem noção do quanto é sério e blasfemo construirmos pontes de moral e bons costumes? Pontes de vestuário e reforma de saúde? Elas parecem seguras a princípio, mas depois se mostram como isopor em meio ao abismo; ao que nos precipitamos no despenhadeiro do pecado, não importa o quão corretos pareçamos.

Paulo disse que a cruz é escândalo (1Co1:18). E como ele estava certo! Para muitos, é escândalo substituir nossas belas e limpinhas obras (aos nossos olhos), nosso vegetarianismo e nossas vestes decentes, por um madeiro rude e ensanguentado. Mas a única ponte segura é essa cruz. Faça amizade com o homem da cruz, conheça-O e Ele lhe conhecerá.

A Bíblia nunca disse que no último dia os que ficarão à parte do reino serão aqueles que não substituíram suas calças por saias, mas aqueles que não substituíram suas vestes pelas vestes do Cordeiro (Mt22:11-13). São aqueles que se preocuparam em cumprir uma porção de coisas exteriores (Mt7:22), mas não se preocuparam em relacionar-se com Ele, em conhecê-Lo intimamente; por isso, Ele declarará nunca tê-los conhecido (Mt7:23; 25:12).

Conhecer a Deus. ESSA é a coisa mais importante. A ISSO devemos devotar nossa vida. ESSA é a ênfase bíblica. Por que, então, tem-nos sido pregado outro evangelho (Gl.1:6-9)?

Devemos buscar a Cristo diariamente porque Ele nos amou primeiro (1Jo4:19), por isso O amamos, e não simplesmente porque Ele pode fazer de nós meninos e meninas bonzinhos. Se você não buscar conhecer a Cristo por causa dEle mesmo ao invés de por causa da santidade que Ele tem para lhe oferecer (lembra que já falamos sobre a teologia da prosperidade espiritual?), ficará sem ambos. Busque a Cristo, e certamente você terá todo o resto (Mt6:33).


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